Processos centenários do Arquivo Central do TJAM são selecionados para receber o selo “Memória do Mundo”, da Unesco
Reunidos sob o título “Africanos Livres no Judiciário Amazonense do Século XIX”, os processos passam a figurar em registro que busca preservar coleções documentais de importância nacional.
Em cerimônia programada para o próximo dia 12 dezembro, no Rio de Janeiro, uma coleção de quatro processos que integram o acervo do Arquivo Central do Tribunal de Justiça do Amazonas receberá o selo “Memória do Mundo”, passando a figurar no Registro Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo (MoW), da Organização das Nações Unidades par a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O anúncio dos 10 acervos selecionados na edição 2018 do MoW Brasil, foi feito pelo comitê nacional do programa, no site do Museu Nacional, no último mês de outubro.
Reunidos sob o título “Africanos Livres no Judiciário Amazonense”, os processos – datados de 1859, 1863, 1865 e 1866 e que tramitaram no Tribunal do Júri – oferecem um registro da presença negra na Amazônia, no período pré-abolição da escravatura no País. A escolha do acervo reconhece a relevância dos documentos para a memória coletiva da sociedade brasileira.
É a primeira vez que uma instituição amazonense figura no registro nacional do MoW (Memory of the World, na sigla em Inglês), criado em 2007 sob a chancela do Ministério da Cultura, como parte do projeto lançado pela Unesco. “Na Região Norte, apenas o Museu Paraense Emílio Goeldi já havia tido documentos nominados no registro. Neste ano de 2018, 29 candidaturas estavam concorrendo à nominação e o TJAM ficou entre as 10 aprovadas”, destaca o gerente do Arquivo Central do TJAM, Pedro Neto.
Resgate histórico
Ao inscrever a seleção de quatro processos no MoW Brasil 2018, o Arquivo Central do TJAM frisou que, por pressão da Inglaterra, o tráfico negreiro no Brasil foi proibido por lei em 1831. A partir de então, todos os africanos e escravizados resgatados do tráfico ou vindos de fora do país eram considerados oficialmente livres em terras brasileiras. A lei, no entanto, teve pouca aplicabilidade e, na prática, fazia-se generalizada vista grossa ao tráfico negreiro e à entrada de novos escravos. Situação que só começaria a mudar em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz.
Os chamados “africanos livres”, aqueles principalmente identificados como traficados ilegalmente após a Lei Eusébio de Queiroz, seguiam tutelados e prestando serviços obrigatórios ao Estado por 14 anos até sua efetiva emancipação. Esses personagens configuram parte importante da temática pré-abolição no País, mas sua presença na Amazônia é pouco conhecida.
Mestre em História Social e integrante da equipe do Arquivo Central do TJAM, Juarez Clementino da Silva Júnior destaca que, de um modo geral, a presença negra na Amazônia – nos períodos pré e pós-abolição – foi até recentemente “invisibilizada” e minorada, levando a uma equivocada negação desta presença e ausência historiográfica. Segundo ele, no caso especifico dos chamados “africanos livres”, estima-se que um grupo de 70 pessoas nessa condição viveu na cidade de Manaus.
“Os processos são registros que permitem verificar que historicamente a presença negra no Estado já se dava de várias formas mesmo no período pré-abolição, como escravizados, livres ou libertos e na situação diferenciada dos chamados ‘africanos livres’, comum e bastante conhecida no resto do País, mas pouco conhecida e divulgada no contexto da Região Amazônica, especificamente do Amazonas. Não é uma novidade, mas dá visibilidade sobre o assunto e colabora de forma geral com o conhecimento da questão da presença negra na região e tudo o que isso representa socialmente”, frisa o historiador.
O conjunto de processos apresenta julgamentos em Tribunal do Júri, de casos envolvendo africanos livres, como réus e vítimas de ofensas físicas entre si; como ofendidos por um branco; e como ofensores contra um branco, além daqueles na condição de testemunha. “A coleção descortina parte dos conflitos e relações comuns entre os africanos livres e a sociedade oitocentista na capital amazonense”, explica Juarez.
Nominação
Os acervos selecionados no MoW 2018 constarão de Portaria do Ministério da Cultura publicada em Diário Oficial da União e as instituições custodiadoras receberão os certificados de nominação e a logomarca que os identifica como acervo "Memória do Mundo da Unesco", a nível nacional, na cerimônia prevista para o dia 12 de dezembro, na capital carioca.
“A equipe do Arquivo Central está de parabéns pela iniciativa de inscrever o Tribunal no programa da Unesco e pelo êxito em garantir que essa coletânea de processos centenários, integrantes do acervo do nosso Tribunal, passe a figurar no prestigioso registro o Programa Memória do Mundo. É razão de orgulho para nós sabermos que estamos contribuindo para preservar a memória documental do País, especialmente da Amazônia”, afirmou o presidente do TJAM, desembargador Yedo Simões.
Mais de 70 países, entre eles o Brasil, participam hoje do MoW. Com o resultado da seleção deste ano, chega a 111 o número de acervos documentais registrados no MoW Brasil. Em nível regional (que considera América Latina e Caribe), o país já conta com 19 acervos nominados e em nível internacional, sete acervos, entre eles arquivos da Fundação Biblioteca Nacional, da Fundação Oscar Niemeyer, do Museu Imperial e da Sociedade Amigos de Imagens do Inconsciente.
Esforço para preservação
http://mow.arquivonacional.gov.br/index.php/2015-03-20-10-44-04/apresentacao.html
O Programa Memória do Mundo foi criado a partir da preocupação de Frederico Mayor Zaragoza que, como diretor-geral da UNESCO, viu os efeitos da destruição da Biblioteca de Sarajevo, em 1992, durante a Guerra da Bósnia. Na ocasião, cerca de dois milhões de livros, periódicos e documentos, muitos deles raros ou únicos, foram danificados, configurando uma perda de valor incalculável.
A percepção de que a maior parte da memória dos povos está contida em documentos bibliográficos e arquivísticos fisicamente frágeis e em constante risco por desastres naturais, guarda inadequada, roubos e guerras, exigia respostas que assegurassem a identificação desses acervos, sua preservação e acesso público.
Nasceu, então, o MoW, que tem entre seus objetivos assegurar a preservação, pelas técnicas mais apropriadas, do patrimônio documental com significação mundial; auxiliar o acesso universal a esse patrimônio, aumentando a disseminação do conhecimento da sua existência e significação.
Para alcançar seus objetivos, o programa incentiva projetos e atividades não só a partir de uma perspectiva mundial, mas também regional, nacional ou local, com atuação por meio de comitês atuando nessas várias esferas para a identificação de acervos e sua respectiva nominação ao no Registo.