Apesar dos mecanismos de prevenção e proteção previstos no ECA, o Brasil ainda convive com expressiva parcela de crianças e adolescentes em situação de trabalho.
No Brasil, até 2016, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 2.390.246 crianças e adolescentes em situação de trabalho. Os dados superam a população da capital amazonense, que tem 2.182.763 habitantes e foram apresentados durante a explanação do auditor-fiscal do trabalho e chefe do Setor de Fiscalização do Trabalho no Amazonas, Emerson Victor Hugo Costa de Sá. Durante sua participação na mesa-redonda sobre o tema “Trabalho infantil e profissionalização de adolescentes”, que marcou a programação do quarto dia de discussões da “Semana Amazonense em Defesa do Estatuto da Infância e Juventude (ECA)”, Emerson Sá, que também é coordenador do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (Fepeti/AM), refletiu sobre a atuação da rede de proteção que exerce no enfrentamento desse quadro.
Segundo Emerson, a região Norte, apesar de ter a menor densidade demográfica do País, é detentora da metade dos números de trabalho infantil. Ele apresentou casos encontrados pela equipe de fiscalização, como o de meninas do bairro Mauazinho, zona Sul de Manaus, que trabalham vendendo peixe à noite e estão expostas à violência e à exploração sexual, bem como o dos garotos que para ajudar na renda familiar se caracterizavam como palhaços para vender doces nos cruzamentos de rua e acabaram sendo cooptados pelo tráfico e, algum tempo depois, foram mortos pela polícia ao tentarem roubar um celular para pagar dívidas com os traficantes.
“Todos nós somos responsáveis por prevenir ameaças ou violações a direitos. Verificamos, nas abordagens de fiscalização, a mendicância, as crianças trabalhando a céu aberto, expostas a vários riscos. Tanto esse trabalho de venda quanto à mendicância envolvem riscos, porque a sociedade, ao comprar produtos ou doar dinheiro contribui para que eles permaneçam nessa situação, postergando ou aumentando o problema que expõe crianças e adolescentes ao aliciamento pelo tráfico; ao aliciamento sexual; à evasão escolar”, disse o auditor.
A situação da pandemia também foi avaliada pelos integrantes da mesa-redonda. Escolas fechadas para prevenir a transmissão do novo coronavírus, apesar de demonstrar a preocupação do poder público com a saúde de crianças e de adolescentes em idade escolar, também podem levar a criança e o adolescente a usar o tempo para trabalhar para ajudar a família de baixa renda. “Com essa pandemia da covid-19 e as escolas fechadas, o trabalho pode parecer uma forma de crianças e adolescentes ajudarem suas famílias, mas ele impacta no desenvolvimento físico e emocional de crianças e pode impedir a continuidade de educação, reproduzindo o ciclo de pobreza nas famílias. Seguindo os dados divulgados pelo IBGE em 2016, dos 2,3 milhões de crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no Brasil.
Estima-se que 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho ou estudo. O problema afeta, em especial, as meninas e os meninos negros. Os dados indicam que 64,1% eram negros. Na região Norte esse percentual era ainda maior, sendo 86,2%, seguido da região Nordeste com 79,5%”, apontou o mediador da mesa-redonda, Anderson Lincoln Vital, advogado e secretário-geral da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/AM.
Também integraram a mesa de debates da última quinta-feira (16), a mestre e doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e membro da Comissão de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/AM, Maria Lenir Pinheiro; o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT/11) e coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), Jorsinei Dourado do Nascimento; e o juiz do trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 11.ª Região – AM/RR, Igo Zany Nunes Corrêa.
Em sua fala Maria Lenir Pinheiro se reportou a importantes artigos do ECA que dão garantias de educação e proteção ao trabalho do adolescente, salientando que o estatuto veio para reafirmar o Princípio da Proteção Integral. “Falamos sobre a proibição de qualquer trabalho a menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz, no caso os nossos adolescentes que recebem a formação profissional, ministrada segundo as Leis de Diretrizes e Bases da Educação. As leis vêm buscando justamente o resguardo para o desenvolvimento de nossas crianças e nossos adolescentes, principalmente das crianças, para que elas não sejam levadas a realizar nenhum tipo de trabalho, para preservar o seu desenvolvimento, que tem que ser totalmente harmônico, em todas as suas áreas, em todas as suas fases. O artigo 60 (do ECA) coloca justamente essa questão da profissionalização a partir da aprendizagem, do menor aprendiz, com um capítulo todo dedicado a disciplinar esse direito do adolescente, que é um direito à sua profissionalização e à proteção do seu trabalho, estabelecendo aí princípios e garantias, como essa formação técnico-profissional, com garantia de acesso e frequência escolar de horários especiais, atividades compatíveis para que não venham atrapalhar o desenvolvimento desse adolescente”, informou.
A professora Maria Lenir destacou, ainda, o artigo 65 do estatuto, que traz a garantia de direitos trabalhistas e direitos previdenciários; bem como o artigo 67, que traz a proibição de trabalho perigoso, em locais e horários inadequados e insalubres e que retirem o adolescente de sua rotina escolar.
Situação histórica do trabalho infantil
O juiz do trabalho Igo Zany avaliou a situação histórica e os benefícios da atividade do menor aprendiz protegido por lei. O magistrado informou que existem, atualmente, 3 mil vagas em postos de trabalho para menor aprendiz no Amazonas e que cabe à rede de proteção, ao poder público e à sociedade harmonizarem as necessidades para ocupar o adolescente carente com o preenchimento dessas vagas, como forma de garantir a ele um futuro melhor, quebrando um ciclo de pobreza herdado de gerações de mão de obra barata.
“A aprendizagem existe e é um instrumento eficaz contra o trabalho infantil. Séculos de diferença em relação à Revolução Industrial, mas essa discussão ainda é a mesma sobre o trabalho infantil, porque ele mostra que é fruto da miséria. Por trás de uma criança que trabalha, de um adolescente que trabalha, eu tenho uma família desestruturada e um ciclo de desigualdade que envolve o pai e a mãe, que foram explorados; que trabalharam na adolescência; não tiveram informação; não tiveram ensino superior; não puderam vencer o sistema de opressão imposto pelo racismo estrutural e vão repetindo esse ciclo. E qual é a forma que eu tenho que romper esse círculo? Justamente essa, você dar para a criança acesso à educação”, disse o magistrado.
Para o procurador-chefe do MPT/PTR11, Jorsinei Dourado do Nascimento, a legislação é clara e deve ser atendida em total benefício da criança e do adolescente. “Há segmentos empresariais que ao se depararem com a questão da cota social, inclusive por ações civis públicas do Ministério Publico do Trabalho, que recentemente ajuizou mais de 60 ações, em janeiro e fevereiro, ainda criam resistência, alegando incompatibilidade da atividade para ser exercida por jovem aprendiz”, afirma o procurador. Ele deu como exemplo uma empresa de vigilância e umas empresas de transporte, onde adolescentes entre 14 a 24 anos não podem exercer a atividade-fim, no entanto a empresa pode cumprir o que a lei determina, por meio da cota social, colocando o jovem em um órgão ou instituição como, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Amazonas, onde muitos jovens vêm exercendo funções, construindo novas possibilidades para a própria vida e sendo remunerados pela empresa em vez de estarem sujeitos a ambientes insalubres ou de risco.
A Semana Amazonense em Defesa do ECA, com sua programação toda realizada de forma virtual, em decorrência das regras de distanciamento social impostas pela pandemia de covid-19, foi organizada pela Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coij/TJAM), em parceira com a OAB/AM, para marcar o aniversário de 30 anos de promulgação do ECA. O evento também tem o apoio do Ministério Público e da Defensoria Pública.
Sandra Bezerra
Foto: Chico Batata
Revisão de texto: Joyce Tino
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