Evento marcou o lançamento da Cartilha de Direitos LGBTQIAPN+ com foco na conscientização jurídica e cidadania da comunidade no contexto amazônico.
Com o objetivo de debater avanços, lacunas e perspectivas na construção de uma Justiça mais inclusiva, o 1º Ciclo pelo Orgulho e pela Diversidade no Poder Judiciário do Amazonas foi realizado nesta quinta (17) e sexta-feira (18), no Fórum Trabalhista de Manaus. Sob o lema “Construindo espaços de respeito, oportunidades e visibilidade para pessoas LGBTQIAPN+”, o evento promoveu a mesa-redonda “Visibilidade, Vozes e Vivências nas Comissões”, que contou com a presença de autoridades do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (AM/RR), Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), do Ministério Público do Amazonas (MP-AM) e do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM).
Representando o Conselho Estadual de Combate à Discriminação LGBTQIAPN+ do Amazonas (CECOD-AM) e a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (ASSOTRAM), a historiadora Michele Pires Lima ressaltou ser extremamente importante essa iniciativa promovida pelo Judiciário. “Realizar esse tipo de evento, especialmente pelo Poder Judiciário, é extremamente significativo. Essas instituições ainda carregam resquícios de uma perspectiva conservadora, então, fazer isso é derrubar mais um obstáculo, reafirmando o compromisso com a pluralidade e a diversidade humana”, destacou.
Mesa-redonda
Durante a mesa-redonda, representantes das comissões de diversidade do TRT-11, TJAM, MP-AM e TRE-AM compartilharam vivências que evidenciam o impacto direto das políticas de inclusão em suas respectivas instituições. A juíza do TRE-AM Mônica Cristina Raposo da Câmara Chaves do Carmo destacou o papel transformador da educação no enfrentamento ao preconceito: “Tudo começa com uma base de respeito. Antes de julgar ou agir, sempre penso: eu gostaria que fizessem isso comigo?”. Ela alertou para o agravamento das práticas discriminatórias nas escolas e defendeu uma abordagem mais acolhedora nas instituições de ensino. 527
Representantes das comissões de diversidade do TRT-11, TJAM, MP-AM e TRE-AM durante mesa-redonda
Em um relato pessoal, a promotora Karla Reis do MP-AM compartilhou sua vivência como mulher preta, periférica e bissexual, enfatizando que suas identidades não podem ser dissociadas do exercício da função pública. “Ser quem eu sou é o que me permite atuar com responsabilidade e representatividade”. Ela também reprovou atitudes institucionais que buscam silenciar ou ignorar a sexualidade e gênero dos agentes públicos: “Não é vitimização reconhecer nossos marcadores. E ninguém tem o direito de nos calar por sermos quem somos”, destacou.
O juiz do Trabalho Igo Corrêa trouxe à tona o impacto da passabilidade e das violências simbólicas naturalizadas, exemplificando com frases como “você nem parece gay”: “Eu quero parecer mais ainda. Porque ocupar esse espaço com autenticidade é um ato político”. Já o juiz do Trabalho André dos Anjos reforçou que o evento foi fruto da mobilização de comissões voltadas ao enfrentamento ao assédio e à discriminação, e destacou o papel das parcerias com iniciativas da sociedade civil, como o Coletivo Empregay e o Casarão de Ideias. “Estamos aqui para mostrar que existimos, que temos voz, e que não estão falando sobre nós, estão falando conosco”, enfatizou.
Encerrando a rodada, o servidor do TJAM Rodrigo Melo apontou a importância das normativas institucionais, como as resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e defendeu sua efetiva implementação: “As políticas públicas precisam sair do papel para que a cultura institucional se torne realmente inclusiva e respeitosa”.
Direitos LGBTQIAPN+
O evento contou ainda com o lançamento de uma cartilha informativa voltada à comunidade LGBTQIAPN+, elaborada por estudantes da pós-graduação em direito da Ufam. O material reúne informações sobre direitos, cidadania e proteção jurídica das diversas expressões de identidade de gênero, com foco especial nas realidades amazônicas. A iniciativa reforça o papel da universidade na promoção da equidade e no fortalecimento de vínculos entre instituições públicas e sociedade civil. O material está disponível em versão digital.
A cartilha é fruto direto da disciplina “Corpos Marginalizados e a Violação de Direitos Humanos”, ministrada no programa de mestrado em direito. Segundo o coordenador do curso, professor Thiago Galeão, o conteúdo reflete uma atividade de impacto social que ultrapassa os limites da academia. “Precisamos ir além dos muros acadêmicos. Os debates e reflexões que ocorrem dentro da pós-graduação devem alcançar a sociedade. Esta cartilha é um exemplo disso”, afirmou.
Conquistas e lacunas na Justiça
A palestra do professor doutor Paulo Iotti com o tema “Direitos LGBTQIAPN+ no Brasil: Conquistas, Lacunas e Caminhos” ofereceu uma análise sobre os avanços e os desafios na efetivação dos direitos. Ele abordou questões como a exclusão de homens gays na doação de sangue, a censura de gênero nas escolas, e os fundamentos jurídicos que permitiram ao Supremo Tribunal Federal (STF) equiparar a LGBTfobia ao crime de racismo. Para Iotti, essa equiparação representa uma resposta constitucional à violência simbólica e estrutural sofrida por pessoas LGBTQIA+: “Criminalizar a homofobia não é ampliar arbitrariamente o conceito de racismo. É reconhecer, como o Supremo fez, que a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ opera como uma prática racista, política e socialmente construída para excluir”, afirmou.
O professor também criticou o retrocesso provocado pelo parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), que limita o acesso ao bloqueio puberal e à hormonização de adolescentes trans, defendendo que restrições desprezam a dor e os direitos de pessoas trans e intersexo. Ao final da exposição, fez uma defesa da atuação do Judiciário como instância fundamental na conquista da cidadania plena para essa população: “Só não somos cidadãos e cidadãs de terceira classe porque o Judiciário tem tido coragem de enfrentar a tirania da maioria e reconhecer nossos direitos, mesmo quando o Congresso se omite ou é hostil”, argumentou.
Justiça com perspectiva de gênero
O representante do CNJ, Marcel da Silva Augusto Corrêa, falou do Formulário Rogéria e esforços para ampliar o acesso à justiça e garantir os direitos da população LGBTQIAPN+. enfatizando a importância da ferramenta como mecanismo de escuta qualificada e proteção à população LGBTQIAPN+. De acordo com ele, o formulário, instituído pelo CNJ, tem como objetivo registrar situações de risco e violência com sensibilidade às identidades de gênero e orientações sexuais, promovendo encaminhamentos adequados e humanizados dentro do sistema de Justiça.
O juiz Saulo Góes Pinto, do TJAM, apresentou a palestra “A Invisibilização da Homotransfobia e seus Impactos Sociais no Amazonas”, destacando que o maior desafio no combate à homotransfobia é justamente sua negação e silenciamento. Segundo o magistrado, a ausência de registros, estatísticas e reconhecimento institucional perpetua um ciclo de violência e exclusão que atinge de forma grave a população LGBTQIAPN+, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.
O magistrado ressaltou que a invisibilidade não significa ausência do problema, mas sim falta de ação diante dele. “Quando não registramos, não falamos e não nomeamos a homotransfobia, estamos legitimando práticas discriminatórias e impedindo que políticas públicas eficazes sejam implementadas. Precisamos romper esse silêncio e assegurar que o Judiciário seja um espaço de acolhimento e proteção para todas as pessoas”, afirmou. Ele também apontou a importância de instrumentos e capacitações que permitam uma atuação sensível e humanizada no enfrentamento à discriminação no Amazonas.
Justiça Inclusiva e Transformadora
Em seguida, o professor doutor Denison Aguiar, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), apresentou a palestra “Olhares da Justiça Inclusiva e Transformadora: entre direito, gêneros e diversidade sexual”, propondo uma reflexão crítica sobre os limites da atuação jurídica diante das complexidades da vida real. Segundo ele, o problema da exclusão não está apenas na ausência de leis, mas na forma como elas são interpretadas por operadores do direito.
“Nosso problema como causa é cultural, machismo, misoginia, preconceito, discriminação. O problema jurídico é consequência”, afirmou. Para Aguiar, é preciso que magistrados e promotores reconheçam que a Justiça não pode se limitar a uma leitura formalista da norma, mas deve incorporar escuta, acolhimento e sensibilidade às vivências plurais.
O pesquisador também abordou casos concretos que desafiam a lógica binária e heteronormativa do sistema jurídico, como o exemplo de homens que se identificam como heterossexuais, mas mantêm relações afetivas e sexuais com outros homens, com o consentimento de suas famílias. “O silêncio é a forma como essas complexidades sexuais são vistas. Mas não dá mais para silenciar”, declarou. Denison defendeu que a justiça precisa ser capaz de escutar o “grito sutil” daquilo que o sistema insiste em calar, e que a formação jurídica deve incluir capacitação sobre gênero, sexualidade e direitos humanos.
Texto: Jonathan Ferreira / TRT-11
Fotos: Koynov Romen (TRT-11/ Chico Batata (TJAM)
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